segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Depois de não atender ao telefone, não responder e-mails e dizer pra própria mãe que fosse procurá-la na esquina, não houve como não atender à campainha. Claro que ele iria chegar como quem sequer tivesse tentado se comunicar durante todo o feriado, e iria demonstrar aquela preocupação irritante, e iria acabar lendo gibis velhos no quarto dela, esperando que o banho acabasse, que a animação se manifestasse, que um rastro de sorriso aparecesse pra ele poder brincar.
- Atendeu em tempo record! Tava me esperando, é?
- Estava esperando a morte, pra ser mais exata, mas ela tava demorando tanto que chegou você! - a frase deixava claro que ainda havia algum bom humor, mas ela sabia que ia dificultar a vida dele. Na verdade, um dia brigariam de forma definitiva, mas por maior que fosse o incômodo, ainda não seria hoje, não se ela pudesse evitar.
- Adoro o seu humor de porco espinho!
- Adoro você! Me diz o que o traz a tão distante recanto do mundo, hein?
- Soube que você recusou o cinema, o kart, o clube pra levar o aborígene, o almoço com suas amigas... Tá preparando um retiro espiritual ou o hospital agora é mais interessante que o Outback?
- Nada demais. Fora uma gracinha de estagiário que trabalha com meu médico, bem... Nada demais no hospital. Na verdade só fui à clínica, rotina, sem muito alarde. Ainda não cheguei ao estágio da emergência ou do pronto socorro. - ela tinha decidido evitá-lo, se fosse possível.
- E você realmente é daquelas que recusa a social pro bebê, e que prefere uma hora no nefrologista aos vinte sagrados minutos da pista de kart. Entendo...
- Não tava a fim de sair, e o tempo não estava bom pra ir ao clube. Algum problema? Tô sem saco, só isso!
- Não teria problemas se você fosse mais franca. Engraçado que você não deve ser tão fechada assim com todo mundo... Tem gente que sabe exatamente onde tocar pra te ver fazer coisas, ou contar coisas!
- Questão de talento, amorzinho, ou você nasce com isso, ou se rói de inveja de quem tem! Dá pra parar de me pressionar por nada? Me senti mal, estou gorda, com as articulações vencidas, coisa da idade! - ia ser difícil se não terminasse naquele instante, tinha que torce pelo bo senso que ele sempre teve.
- Você quer que eu vá embora? - ele pergunta, sabendo a resposta. Ela se sente aliviada.
- Não - ela mente - quer ver um filme?
- Vai sair de casa?
- Não! Tô cansada! Vamos escolher alguma coisa e eu faço pipocas! - ela o ama, isso é certo. Não se deixa um grande amigo passar assim, ela não deixaria. Brigar não os satisfaria, pelo menos não depois de 15 ou 20 minutos.
- Se não for algo parecido com o que você tem visto ultimamente vou me sentir mais tentado... - ele é implicante, mas sabe como descontraí-la.
- Você pega o filme! Vê lá no meu quarto, põe o filme que eu já subo. Se não tiver nada que agrade no rack, tem as caixas de séries no armário e alguns shows nas gavetas.
- Pega as chaves - ele joga as chaves do carro - tem um espumante legal no porta malas. Não combina com pipoca, mas eu sei que você vai gostar. Se você puder tomar um pouco... Se não fizer mal...
- Não vai fazer! Vou pôr pra gelar e a gente toma mais tarde - ela grita enquanto ele sobe as escadas.
- Deve estar gelado, está bem acondicionado! - ele volta, rindo - Está achando que está lidando com um amador, docinho?
Ela ri e pensa em como foram parar assim. Nem deviam ter se tornado amigos, dadas as diferenças quase irreconciliáveis, mas foram mais longe que o companheirismo da sala de aula.
- Tem algo decente por aqui? Terror? Filme de gente grande?
- Não vou te responder sobre o terror, mas quanto aos filmes de gente grande, deve ter alguma coisa, mas não acho muito apropriado vermos isso, sozinhos então, sem chance!!!
- Palhaça! - Ele voltou ao quarto, rindo da brincadeira. Escolheu um filme e pegou uma velha revista em quadrinhos para folhear.
Ela chegou com a pipoca e a bebida, se acomodaram no chão, sem precisar falar. Ela dormiu no meio do filme, estava realmente cansada. Ele não se mexeu, até que ela acordasse, com medo de que o movimento fosse afastar a cabeça da menina do seu colo. Depois que ela levantou ele a colocou na cama, afagou seu cabelo e se despediu, sem falar. Tarde da noite o telefone tocou, era ele, pra saber se estava tudo bem, pra desejar boa noite, pra avisar sobre os bombons e as flores na mesa da cozinha, pra ser muito importante, mais uma vez.
Sally, dias (im)possíveis.

Um comentário:

Unknown disse...

Ler o que você escreve é se expor e se arriscar, uma série de sentimentos são derramados nessas linhas, você escreve bem demais. ler seus escritos e estar prestes a ser inundado por torrentes de emoções que porvezes preferimos sufocar, qualquer monografia perde o sentido quando visito essas declarações.Sem medo de redundancias, você escreve bem demais, e eu me pego tomando coragem de ler, sabendo que as suas palavras causam ao leitor um impacto por vezes até desconcertante. VOCÊ ESCREVE BEM DEMAIS!!!!!